RESPIRAR PINCELAR Chapa de alumínio, tinta à óleo, cor, pinceladas contínuas e verticais, incisão com buril, grade: Tatiana Stropp escolhe elementos para impulsionar sua produção artística. Optar e inventar não são tarefas fáceis, pois para o artista de hoje tudo está disponível como matéria de trabalho. Utilizando desses materiais e procedimentos, a pintura tem sido a escolha de Tatiana. Sabe-se que no século XX a abstração adquiriu um prestígio equiparável ao da figuração. Com ela, um tipo de espacialidade passou a se tornar um dos emblemas da arte moderna: a grade (grid), como nos ensina a crítica norte-americana Rosalind Krauss, silencia a pintura, suplantando a narrativa e o discurso. Anuncia um espaço planar, geométrico e ordenado. Agindo como uma cortina que se fecha sobre o quadro, ainda deixa, contudo, espaço para a ilusão e a ficção. Não por acaso, um dos predecessores dessa forma de ordenar está nos tratados de ótica psicológica feitos à época do Impressionismo quando a cor passa a ser aquela percebida por alguém em seu entorno. A pintura de Tatiana aparece como grade junto à superfície opaca do alumínio. O suporte aproxima fisicamente um gesto que não esbanja expressividade. De um único fôlego, a pincelada escorrega sem interrupções verticalmente de cima a baixo pela chapa. Como se fosse preciso respirar fundo para fixar cada gesto. O colorido é dado tanto pelo cinza do suporte como pela escolha minuciosa de cada tom. A cor torna-se acinzentada ao ser misturada com sua complementar: no vermelho coloca-se um pouco de verde, no amarelo, roxo, no azul, laranja. Justapostas e sobrepostas criam-se também novos tons na própria superfície. Geram-se opacidades, transparências e velaturas. Para controlar o efeito do todo, o procedimento é lento. Cada cor/pincelada-ininterrupta é posta dia após dia. Desse controle inicial, surge um pulsar da cor que reluta a ficar presa na estrutura. A cor tenciona a geometria. Esta também perde sua rigidez pela aparência do feito à mão. A pintura passa a ser construída inclusive de linhas finas e sinuosas. Saliências gordurosas aparecem ocasionalmente com o acúmulo da tinta à óleo. Agindo como um vitral, o metal faz brilhar as linhas-cor, conforme a incidência da luz. Vale lembrar que tais brilhos e transparências se perdem numa fotografia do trabalho, alias é sempre muito difícil fotografar um trabalho de arte. Um dos inimigos da abstração como arte, ao menos no início de sua utilização no Ocidente, sem dúvida, é o de ser legada a “mero” ornamento e decoração (ainda que seja preciso atinar ao conceito positivo de decoração como o caráter expressivo da pintura, para Matisse, por exemplo). Diferente do ornamento por conduzir o olhar para um campo delimitado, na inteireza do retângulo, a estrutura da grade faz a pintura funcionar como uma peça apta a ser expandida em todas as direções para fora, para um infinito em expansão. Assim se para se fazer pintura é necessário ter em mente algum conceito de pintura, Tatiana Stropp tem uma história de peso. Há em seu trabalho uma reflexão sobre a constituição de um espaço planar pós-cubista em que o objeto-quadro autônomo não se pretende mais um duplo do mundo. A chapa de alumínio oferece uma espessura de imagem para o seu gesto. Por isso não a carrega com camadas grossas de matéria. Preocupa-se em agir tão-somente na superfície (daí o corte com o buril a revelar o material em que se trabalha). Algo dessa ordem ocorre nas primeiras obras do Neoconcretismo; quando, ainda trabalhando no plano, os artistas propunham, com poucas linhas, cores e deslocamentos, ativar a superfície de modo expressivo. Da afirmação firme da proposta de Tatiana, pequenas mudanças vêm ocorrendo nesses três anos de produção. O prego deixa de estar aparente sobre a pintura, os dípticos são unidos ou passam a ser feitos sobre uma mesma superfície. Modificações demoram meses para acontecer nesse processo. Utilizar ou não o prego, por exemplo, influencia na identificação do peso do objeto: o prego suspende a chapa minimamente afastada da parede possibilitando se ter uma noção de seu peso; porém, torna-se importante tirá-lo da vista, mas sua retirada falseia essa identificação. Tatiana fala muito de honestidade quando se refere à pintura. A coisa, para ela, tem que parecer aquilo que é. Na aparente simplicidade de sua escolha, sem truques e com um trabalho intenso e disciplinado, um vocabulário plástico tem sido lançado. Ele vem carregado de desdobramentos ávidos por acontecer. Ainda que isso se dê lentamente. Daniela Vicentini - outubro de 2006 |
“De um único fôlego, a pincelada escorrega sem interrupções verticalmente de cima a baixo pela chapa. Como se fosse preciso respirar fundo para fixar cada gesto”. Daniela Vicentini - Respirar Pincelar (texto completo)
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“O colorido é dado tanto pelo cinza do suporte como pela escolha minuciosa de cada tom. Justapostas e sobrepostas criam-se também novos tons na própria superfície. Geram-se opacidades, transparências e velaturas. Para controlar o efeito do todo, o procedimento é lento. Cada cor/pincelada-ininterrupta é posta dia após dia.” Daniela Vicentini - Respirar Pincelar - (texto completo)
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RESPIRAR PINCELAR Chapa de alumínio, tinta à óleo, cor, pinceladas contínuas e verticais, incisão com buril, grade: Tatiana Stropp escolhe elementos para impulsionar sua produção artística. Optar e inventar não são tarefas fáceis, pois para o artista de hoje tudo está disponível como matéria de trabalho. Utilizando desses materiais e procedimentos, a pintura tem sido a escolha de Tatiana. Sabe-se que no século XX a abstração adquiriu um prestígio equiparável ao da figuração. Com ela, um tipo de espacialidade passou a se tornar um dos emblemas da arte moderna: a grade (grid), como nos ensina a crítica norte-americana Rosalind Krauss, silencia a pintura, suplantando a narrativa e o discurso. Anuncia um espaço planar, geométrico e ordenado. Agindo como uma cortina que se fecha sobre o quadro, ainda deixa, contudo, espaço para a ilusão e a ficção. Não por acaso, um dos predecessores dessa forma de ordenar está nos tratados de ótica psicológica feitos à época do Impressionismo quando a cor passa a ser aquela percebida por alguém em seu entorno. A pintura de Tatiana aparece como grade junto à superfície opaca do alumínio. O suporte aproxima fisicamente um gesto que não esbanja expressividade. De um único fôlego, a pincelada escorrega sem interrupções verticalmente de cima a baixo pela chapa. Como se fosse preciso respirar fundo para fixar cada gesto. O colorido é dado tanto pelo cinza do suporte como pela escolha minuciosa de cada tom. A cor torna-se acinzentada ao ser misturada com sua complementar: no vermelho coloca-se um pouco de verde, no amarelo, roxo, no azul, laranja. Justapostas e sobrepostas criam-se também novos tons na própria superfície. Geram-se opacidades, transparências e velaturas. Para controlar o efeito do todo, o procedimento é lento. Cada cor/pincelada-ininterrupta é posta dia após dia. Desse controle inicial, surge um pulsar da cor que reluta a ficar presa na estrutura. A cor tenciona a geometria. Esta também perde sua rigidez pela aparência do feito à mão. A pintura passa a ser construída inclusive de linhas finas e sinuosas. Saliências gordurosas aparecem ocasionalmente com o acúmulo da tinta à óleo. Agindo como um vitral, o metal faz brilhar as linhas-cor, conforme a incidência da luz. Vale lembrar que tais brilhos e transparências se perdem numa fotografia do trabalho, alias é sempre muito difícil fotografar um trabalho de arte. Um dos inimigos da abstração como arte, ao menos no início de sua utilização no Ocidente, sem dúvida, é o de ser legada a “mero” ornamento e decoração (ainda que seja preciso atinar ao conceito positivo de decoração como o caráter expressivo da pintura, para Matisse, por exemplo). Diferente do ornamento por conduzir o olhar para um campo delimitado, na inteireza do retângulo, a estrutura da grade faz a pintura funcionar como uma peça apta a ser expandida em todas as direções para fora, para um infinito em expansão. Assim se para se fazer pintura é necessário ter em mente algum conceito de pintura, Tatiana Stropp tem uma história de peso. Há em seu trabalho uma reflexão sobre a constituição de um espaço planar pós-cubista em que o objeto-quadro autônomo não se pretende mais um duplo do mundo. A chapa de alumínio oferece uma espessura de imagem para o seu gesto. Por isso não a carrega com camadas grossas de matéria. Preocupa-se em agir tão-somente na superfície (daí o corte com o buril a revelar o material em que se trabalha). Algo dessa ordem ocorre nas primeiras obras do Neoconcretismo; quando, ainda trabalhando no plano, os artistas propunham, com poucas linhas, cores e deslocamentos, ativar a superfície de modo expressivo. Da afirmação firme da proposta de Tatiana, pequenas mudanças vêm ocorrendo nesses três anos de produção. O prego deixa de estar aparente sobre a pintura, os dípticos são unidos ou passam a ser feitos sobre uma mesma superfície. Modificações demoram meses para acontecer nesse processo. Utilizar ou não o prego, por exemplo, influencia na identificação do peso do objeto: o prego suspende a chapa minimamente afastada da parede possibilitando se ter uma noção de seu peso; porém, torna-se importante tirá-lo da vista, mas sua retirada falseia essa identificação. Tatiana fala muito de honestidade quando se refere à pintura. A coisa, para ela, tem que parecer aquilo que é. Na aparente simplicidade de sua escolha, sem truques e com um trabalho intenso e disciplinado, um vocabulário plástico tem sido lançado. Ele vem carregado de desdobramentos ávidos por acontecer. Ainda que isso se dê lentamente. Daniela Vicentini - outubro de 2006
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Benedito Costa Neto
Não há como não reparar no brilho das pinturas de Tatiana Stropp. Porém, tal brilho não se deve apenas à cor do alumínio e sim ao resultado da pesquisa da artista em relação à cor e ao tipo de material com que cobre a cor. Muito se pensa que as pinturas são transparentes, permitindo divisar a superfície, quando na verdade as diversas camadas de tinta cobrem o alumínio, num jogo interessante de sentidos e resultados: alumínio coberto, alumínio redescoberto, material escondido, material revivido.
Este mesmo alumínio serve de metáfora para a investigação de Tatiana Stropp. Assim como a leveza do alumínio não revela sua complexidade, um rápido passeio pelos trabalhos da artista não levaria também em consideração sua complexidade: tempo de execução, pesquisa de cor, texturas, formas, de uma busca nem tranquila nem exasperada, por um resultado que se constrói dia a dia, semana a semana, mês a mês.
A sutileza não é invenção da artista, tampouco sua fundamentação. De todo modo, ela não deseja/almeja a sutileza por si só ou como objetivo último do trabalho, uma vez que isso mascararia uma pesquisa consistente ou seria como uma busca da verdade. Sutileza não pode, todavia, ser confundida com simplicidade. Então, a sutileza aqui é um véu que encobre um processo lento e dificultoso, de longas esperas e de descobertas contínuas.
O trabalho da artista, o trabalho final da artista, é uma antiarqueologia. O arqueólogo busca, delicadamente, vestígios do passado, vestígios que serão analisados e cujo conjunto formará um corpo, um corpo com certa ideia da verdade ou da possibilidade dela. Stropp faz uma busca também delicada – pois cuidadosa – de um corpo, mas faz o contrário do arqueólogo: acrescenta vestígios.
A questão da paisagem involuntária parece ficar mais patente quando as listras que antes eram verticais ganham horizontalidade.
O trabalho dela está para as artes plásticas assim como a poesia pseudo-naïf está para a literatura. Na Literatura, diversos poetas (em variadas épocas e escolas) buscam o simples no extremamente complexo. A poética de Tatiana Stropp não difere disso.
Benedito Costa Neto
(Quatiguá, Paraná, 1966) é professor de língua portuguesa e literatura e consultor empresarial na área de linguagem oral e escrita. Colaborador dos jornais da RPC-TV, é crítico e colecionador de arte contemporânea. Diante do Abismo é seu primeiro trabalho de ficção.
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Sobre o suave e o perene
O alumínio é um material que guarda características bastante díspares, em comparação com outros metais ou ligas: ele é leve e resistente, suporta altíssimas temperaturas (embora em termos químicos tenha baixo ponto de fusão) e não deforma com facilidade. Ao mesmo tempo é maleável, mas tem grau de dureza que se deve considerar. Ao mesmo tempo que traz, digamos, dificuldades no trato – mais que o ferro ou o cobre, por exemplo – após moldado trará grandes benefícios, sendo o maior deles a durabilidade. No mesmo diapasão, a indústria há muito descobriu os poderes do alumínio, do duralumínio, na verdade, uma liga com outros metais, com grande resistência à corrosão (seu nome vem de um lugar chamado Düren). Junte-se a isso o fato de o alumínio polido brilhar, característica que faz dele um interessante elemento de consumo. Tudo isso não teria o menor sentido não fosse o fato de o (dur)alumínio ter sido o material escolhido pela artista Tatiana Stropp como base para suas investigações sobre cor, aplicação e forma. O prateado fosco da superfície do (dur)alumínio é resultado da oxidação do material quando este é exposto ao ar, oxidação justamente que impede a corrosão típica de outros metais, como o ferro. Esta cor, ou esse jogo de cores, algo entre prateado e madrepérola, trouxe certos desafios à artista. Valeria lembrar que o nome “alumínio”, de um modo ou de outro carrega uma ideia muito antiga de “pedra-lúmen”, ou seja, de uma pedra que brilha. O nome “alumínio” seria então da mesma família de palavras como “luminoso”, “iluminar”, “lúmen”. Não há como não reparar no brilho das pinturas da artista. Porém, tal brilho não se deve apenas à cor do alumínio e sim ao resultado da pesquisa da artista em relação à cor e ao tipo de material com que cobre a cor. Muito se pensa que as pinturas são transparentes, permitindo divisar a superfície, quando na verdade as diversas camadas de tinta cobrem o alumínio, num jogo interessante de sentidos e resultados: alumínio coberto, alumínio redescoberto, material escondido, material revivido. Este mesmo alumínio[Nota de rodapé] serve de metáfora para a investigação de Tatiana Stropp. Há de se aproximar bem de perto dos trabalhos dessa artista contemporânea para uma apreciação adequada. Assim como a leveza do alumínio não revela sua complexidade, digamos, estrutural, as asperezas de sua fundição e de seu trato e ainda as dificuldades de seu manuseio, um rápido passeio pelos trabalhos da artista não levaria também em consideração sua complexidade: tempo de execução, pesquisa de cor, texturas, formas, de uma busca nem tranquila nem exasperada, por um resultado que se constrói dia a dia, semana a semana, mês a mês. São pinturas de uma sutileza visível, as quais podem lembrar técnicas delicadas como a aguada ou ainda tinturas com chá num papel muito delicado, o que lhe daria certa leveza oriental, mas a violência delas é outra, presente e camuflada, e está mais para um trabalho pesado e de esforço contínuo, o que faz ponte com certa intuição que temos quando pensamos em metais: aspereza, rudeza, peso, etc. A sutileza não é invenção da artista, tampouco sua fundamentação. De todo modo, ela não deseja/almeja a sutileza por si só ou como objetivo último do trabalho, uma vez que isso mascararia uma pesquisa consistente ou seria como uma busca da verdade. Feito um trabalho, este poderia ser copiado indefinidamente, mas cada pintura tem sua busca e cada pintura tem seu suporte (e não podemos deixar de levar em consideração as imperfeições da superfície do alumínio, a tonalidade de cada peça, as manchas que muitas mãos imprimiram nelas, o próprio formato de cada “tela”). Sutileza não pode, todavia, ser confundida com simplicidade. Trabalhos barrocos ou intrincados como certos entalhes chineses podem ser sutis, quer no trato, quer no que têm a dizer. Então, a sutileza aqui é um véu que encobre um processo lento e dificultoso, de longas esperas e de descobertas contínuas: o resultado das cores, as várias camadas necessárias, a condição da superfície do metal como um componente/oponente do processo, o resultado da junção das cores. A busca da cor perfeita e da junção de uma cor a outra é um trabalho árduo, a começar pela inserção dessa cor – ou dessas cores – na superfície metálica. Por mais que o metal seja polido, ele apresenta manchas ou pequenas imperfeições (vistas muito de perto, como já dito) do processo mesmo da fundição. Em paralelo, não sendo impermeável à tinta, não chega a ser totalmente receptivo. A condição de um metal que reflete luz, dada sua camada de oxidação, impõe-se. É nessa resistência que se encontra um dos momentos mais belos do trabalho da artista. A transparência, o perolado, o prateado, o brilho da madrepérola, tudo isso junto é raríssimas vezes resultado do metal que se sujeita aos desafios da tinta. É a tinta que procura o metal, que o invade, que vai ao seu encontro e não o contrário. O metal, aí, então, não brilha por si só, não traz o que carrega de antemão consigo, não leva isso adiante, tampouco busca no espectador esse interesse típico do design de joias ou dos frascos de perfume: seduzir pelo brilho. De fato, existe a junção entre a superfície do metal e o resultado das tintas, mas tal finalização é demorada, procurada, investigada incessantemente, em viagem de espera, de paciência, de encontros fortuitos. Há muito do trabalho de artesão nessa busca, assim como ocorre com o trabalho dos grandes ceramistas. Porém, na estética de Tatiana Stropp o esforço artesanal não é a busca do mesmo e sim um olhar para o escuro. Expliquemos isso: para um teórico como Giorgio Agamben, o (artista) contemporâneo só pode ser assim chamado se olhar para o “sorriso demente de seu século” e se fixar nele, mas não para ver seu brilho e sim para ver seu escuro. Evidentemente aqui há um jogo de ideias e de dizeres, pois o trabalho da artista conta com o brilho (material). É contemporâneo para Agamben aquilo que se esforça para fugir do que brilha e penetrar naquilo que é o escuro de seu século, aquilo que instiga, que enriquece, que se diferencia, que incomoda, que lhe interpela. Tal questionamento, com toda sua potência de busca e de inquietação, surge nessa busca solitária e particular dessas telas de alumínio pintadas em listras ou em xadrezes. Observando-se o trabalho da artista em seu ateliê e também ouvindo-se suas explanações sobre a técnica escolhida por ela, percebe-se sempre uma indagação, que não é das mais simples: onde posso chegar, como devo chegar, o que pode discutir este trabalho? Aqui caberia um adendo sobre a questão do engajamento da artista. Em décadas anteriores, a palavra engagé era um encouraçado que guardava em seu interior um sentido quase único: um artista político, num sentido inclusive bem restrito de “político”. Ora, além de fora de moda, com a divisão cada vez mais problemática de direita e de esquerda (o que fazia supor que haveria um artista de esquerda ou de direita e por isso engajado), todo artista seria a seu modo um artista engajado e também um atuante do discurso político. Tatiana é engajada, num sentido novo de engajamento, percorrendo um longo caminho no desvendamento da escuridão de seu século: “o facho de trevas que provém de seu tempo”, segundo Agamben, discutindo grandes questões da arte contemporânea. Tatiana Stropp não se deixa levar pelo fácil, pelo comum, pelo que é modismo e que pode gerar trabalhos de fácil execução. Não trabalha o que tem sido um pouco repetitivo nas pesquisas contemporâneas: vídeos, sons, arte de rua, tampouco objetos em ready made. Seu trabalho não pode ser delegado a outrem. Ser contemporâneo, para Agamben, é ser um ser raro. Aqui entra outro aspecto interessante no trabalho da artista: sua pesquisa (técnica demorada, precisa, de resultados imaginados mas que se constroem por si) nos faz questionar se haveria um objeto na pesquisa da arte contemporânea, como há objetos no terreno da Filosofia. Se o objeto de Tatiana é a própria arte (ou o artesanal que há nessa arte), ela mais uma vez prova ser contemporânea – procurar o escuro e não o fogo fátuo ou as luzes perenes – pois incorpora o terrível desafio de questionar exatamente isso: como pode a arte discutir a si mesma? Costumo dizer que não há objeto que não possa ser questionado pela arte. Talvez a arte tenha menos amarras que a Filosofia (não por uma limitação interna nessa grande rede de discursos que é a Filosofia, mas por uma posição da academia em dispor num universo imaginário aquilo que é digno daquilo que é indigno de ser objeto de questionamento; cito aqui certa ideia de Hans Ulrich Gumbrecht ). Vejo aí mais uma vez um engajamento fantástico. Foi uma grata surpresa, também, ver como o trabalho de Tatiana Stropp tem algo de ensaio, num sentido de “ensaio” proposto por Adorno: ser radical no não-radicalismo, explorar o que não é explorado, explorar o que já é explorado, buscando silêncios antigos e esferas novas para o grito, o açoite, o mergulho, o gesto, a aparência, o lúdico, o possível, mas nunca o verdadeiro, porque o verdadeiro está na esfera do impossível. O trabalho da artista, o trabalho final da artista, é uma antiarqueologia. O arqueólogo busca, delicadamente, vestígios do passado, vestígios que serão analisados e cujo conjunto formará um corpo, um corpo com certa ideia da verdade ou da possibilidade dela. Stropp faz uma busca também delicada – pois cuidadosa – de um corpo, mas faz o contrário do arqueólogo: acrescenta vestígios. Alain Badiou chama “inestética” a relação entre a filosofia e a arte, uma vez que a arte, se produtora de verdades, não pode ser objeto da filosofia. Claro que aí há uma provocação, uma ironia. E por ironia aqui não se entenda algo destrutivo ou ofensivo e sim um certo riso (quase) despretensioso. Este riso encontra na pesquisa de Tatiana uma morada nômade. Então, tal pesquisa antiarqueológica é um verdadeiro tratado da anti-inestética. Como resultado visual, vemos cores (em listras e xadrezes), mas também paisagens involuntárias, em que o elemento “tempo” é fundamental. A perenidade é possível depois de um exaustivo trabalho de suavidades e sutilezas. A questão da paisagem involuntária parece ficar mais patente quando as listras que antes eram verticais ganham horizontalidade. Longe de uma arqueologia sobre listras, valeria lembrar que “listra” é variação epentética de “lista”, aquilo que enumera. Ao mesmo tempo, em termos socioculturais, as listas já foram bem mais que uma observação da natureza (o arco-íris, as peles de certos animais). Durante séculos, listras ou listas não foram ornamentos fúteis da movelaria ou do vestuário e sim marcações sociais do interdito. Entendidas como sinal de desordem: marcas para o inadequado, o insano, o proibido. Com o passar do tempo, mas sem a perda total do discurso anterior e sim como variação dele, listas passaram a ser uma possibilidade de impedir o mal, daí grades (em cadeias, gaiolas) e sua utilização em roupas íntimas (como empecilho ao prazer carnal). No caso do trabalho de Tatiana Stopp, não temos nem uma coisa nem outra. Sua pesquisa pela list(r)a, nesse momento, está mais para a liberdade de pesquisa e expressão do que para a mera listagem dos ornamentos ou para a busca do interdito. Não se trata de portões ou grades, material heráldico ou tentativa de marcar o que deve ser punido[Nota de rodapé], ou ainda daquilo que representa o aristocrata ou o serviçal, e sim talvez mostrar aquilo que a luz “esconde”, pesquisar as possibilidades das cores ladeadas, investigar os limites desse modo de representar as cores, seja na horizontal, seja na vertical. De todo modo, pode-se enamorar pela ideia (involuntária, provavelmente) de como a artista sulca, arranha a tela, o metal, não como o trabalho dos gravadores e sim de forma sutil, por uma superfície cuja delicadeza já foi mostrada aqui mesmo: a superfície das superfícies. Listras surgem no trabalho de inúmeros artistas, como é o caso de Fernando Burjato, por exemplo, assim como a materialidade fantasmática, nebulosa, pode ser apreciada em certa pesquisa de Mariannita Luzzati. Mas no primeiro, a investigação é matérica, grossa (e não grosseira) e desaba para os lados de suas telas, fogem do espaço dessas mesmas telas, sendo também cores mais fortes, sem o aspecto aguado de Stropp, e, no segundo caso, temos realmente a impressão de tratar-se de paisagens o que esta artista nos traz, paisagens fugidias. Em Tatiana Stropp, as paisagens chegam, por assim dizer, surgem, aparecem, no falso e no verdadeiro, e não ao contrário, isto é, que sejam procuradas, alteradas, quistas. De todo modo, este universo é mais fechado ou mais contido ou mais liberto dentro das possibilidades já expostas do que os dos demais artistas citados. O metal também lembra um ambiente frio, industrial, mas não se trata desse imaginário o existente na poética de Tatiana Stropp. Aqui, o metal ganha a leveza, pulando de um campo de sentido a outro. O trabalho dela está para as artes plásticas assim com a poesia pseudo-naïf está para a literatura. Na Literatura, diversos poetas (em variadas épocas e escolas) buscam o simples no extremamente complexo. A poética de Tatiana Stropp não difere disso. Benedito Costa Neto (Quatiguá, Paraná, 1966) é professor de língua portuguesa e literatura e consultor empresarial na área de linguagem oral e escrita. Colaborador dos jornais da RPC-TV, é crítico e colecionador de arte contemporânea. Diante do Abismo é seu primeiro trabalho de ficção. |
"Não há como não reparar no brilho das pinturas da artista. Porém, tal brilho não se deve apenas à cor do alumínio e sim ao resultado da pesquisa da artista em relação à cor e ao tipo de material com que cobre a cor. Muito se pensa que as pinturas são transparentes, permitindo divisar a superfície, quando na verdade as diversas camadas de tinta cobrem o alumínio, num jogo interessante de sentidos e resultados: alumínio coberto, alumínio redescoberto, material escondido, material revivido." Benedito Costa Neto - Sobre o suave e o perene - (texto convite)
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RESPIRAR PINCELAR Chapa de alumínio, tinta à óleo, cor, pinceladas contínuas e verticais, incisão com buril, grade: Tatiana Stropp escolhe elementos para impulsionar sua produção artística. Optar e inventar não são tarefas fáceis, pois para o artista de hoje tudo está disponível como matéria de trabalho. Utilizando desses materiais e procedimentos, a pintura tem sido a escolha de Tatiana. Sabe-se que no século XX a abstração adquiriu um prestígio equiparável ao da figuração. Com ela, um tipo de espacialidade passou a se tornar um dos emblemas da arte moderna: a grade (grid), como nos ensina a crítica norte-americana Rosalind Krauss, silencia a pintura, suplantando a narrativa e o discurso. Anuncia um espaço planar, geométrico e ordenado. Agindo como uma cortina que se fecha sobre o quadro, ainda deixa, contudo, espaço para a ilusão e a ficção. Não por acaso, um dos predecessores dessa forma de ordenar está nos tratados de ótica psicológica feitos à época do Impressionismo quando a cor passa a ser aquela percebida por alguém em seu entorno. A pintura de Tatiana aparece como grade junto à superfície opaca do alumínio. O suporte aproxima fisicamente um gesto que não esbanja expressividade. De um único fôlego, a pincelada escorrega sem interrupções verticalmente de cima a baixo pela chapa. Como se fosse preciso respirar fundo para fixar cada gesto. O colorido é dado tanto pelo cinza do suporte como pela escolha minuciosa de cada tom. A cor torna-se acinzentada ao ser misturada com sua complementar: no vermelho coloca-se um pouco de verde, no amarelo, roxo, no azul, laranja. Justapostas e sobrepostas criam-se também novos tons na própria superfície. Geram-se opacidades, transparências e velaturas. Para controlar o efeito do todo, o procedimento é lento. Cada cor/pincelada-ininterrupta é posta dia após dia. Desse controle inicial, surge um pulsar da cor que reluta a ficar presa na estrutura. A cor tenciona a geometria. Esta também perde sua rigidez pela aparência do feito à mão. A pintura passa a ser construída inclusive de linhas finas e sinuosas. Saliências gordurosas aparecem ocasionalmente com o acúmulo da tinta à óleo. Agindo como um vitral, o metal faz brilhar as linhas-cor, conforme a incidência da luz. Vale lembrar que tais brilhos e transparências se perdem numa fotografia do trabalho, alias é sempre muito difícil fotografar um trabalho de arte. Um dos inimigos da abstração como arte, ao menos no início de sua utilização no Ocidente, sem dúvida, é o de ser legada a “mero” ornamento e decoração (ainda que seja preciso atinar ao conceito positivo de decoração como o caráter expressivo da pintura, para Matisse, por exemplo). Diferente do ornamento por conduzir o olhar para um campo delimitado, na inteireza do retângulo, a estrutura da grade faz a pintura funcionar como uma peça apta a ser expandida em todas as direções para fora, para um infinito em expansão. Assim se para se fazer pintura é necessário ter em mente algum conceito de pintura, Tatiana Stropp tem uma história de peso. Há em seu trabalho uma reflexão sobre a constituição de um espaço planar pós-cubista em que o objeto-quadro autônomo não se pretende mais um duplo do mundo. A chapa de alumínio oferece uma espessura de imagem para o seu gesto. Por isso não a carrega com camadas grossas de matéria. Preocupa-se em agir tão-somente na superfície (daí o corte com o buril a revelar o material em que se trabalha). Algo dessa ordem ocorre nas primeiras obras do Neoconcretismo; quando, ainda trabalhando no plano, os artistas propunham, com poucas linhas, cores e deslocamentos, ativar a superfície de modo expressivo. Da afirmação firme da proposta de Tatiana, pequenas mudanças vêm ocorrendo nesses três anos de produção. O prego deixa de estar aparente sobre a pintura, os dípticos são unidos ou passam a ser feitos sobre uma mesma superfície. Modificações demoram meses para acontecer nesse processo. Utilizar ou não o prego, por exemplo, influencia na identificação do peso do objeto: o prego suspende a chapa minimamente afastada da parede possibilitando se ter uma noção de seu peso; porém, torna-se importante tirá-lo da vista, mas sua retirada falseia essa identificação. Tatiana fala muito de honestidade quando se refere à pintura. A coisa, para ela, tem que parecer aquilo que é. Na aparente simplicidade de sua escolha, sem truques e com um trabalho intenso e disciplinado, um vocabulário plástico tem sido lançado. Ele vem carregado de desdobramentos ávidos por acontecer. Ainda que isso se dê lentamente. Daniela Vicentini - outubro de 2006 |
"Como resultado visual, vemos cores (em listras e xadrezes), mas também paisagens involuntárias, em que o elemento “tempo” é fundamental. A perenidade é possível depois de um exaustivo trabalho de suavidades e sutilezas." Benedito Costa Neto - Sobre o suave e o perene - (texto completo)
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tatiana stropp
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